As décadas de 50 e 60 foram os anos de ouro do futebol brasileiro. Ganhamos três Copas do Mundo em um intervalo de 12 anos.
Depois da Copa de 70 só voltamos a ganhar um mundial em 1994 – foram 24 anos só na expectativa.
Foi na Copa de 70 também que duas seleções europeias se destacaram: a alemã e a holandesa. Ambas seleções apresentaram uma forma de jogar coletiva diferenciada, com muita tática e movimentação, que até então não tinha sido vista.
Enquanto isso, os outros países da Europa utilizavam o chamado “futebol força”, estilo que dominou o continente até o final dos anos 90.
O futebol das duas seleções alemã e holandesa ganhou o apelido de “futebol total”. A partir de então esse modelo de jogo passou a ser associado ao futebol moderno.
Mas o que é esse estilo de jogo?
É uma maneira coletiva de organização, na qual os atletas se movimentam intensamente e marcam e atacam com vigor.
Os 3 elementos que colocam o futebol europeu no topo
Foi o resgate desse estilo de jogo, a partir dos anos 2000, que permitiu com que os times europeus ganhassem o destaque e a relevância que têm hoje. Eles demoraram mais de 30 anos para dominar essa técnica, quando, só então, começaram a ganhar de vez a hegemonia mundial. E, durante os últimos 20 anos, esse estilo de jogo foi aprimorado, consolidando os clubes europeus como os melhores do mundo.
A movimentação intensa, a pressão dos jogadores e o domínio de campo, atributo que vem da coletividade, viraram os 3 principais elementos do estilo de jogo dos times da Alemanha, da Espanha, da Inglaterra e de outros países da Europa.
Veja o que o jogador Zé Roberto falou sobre a sua primeira impressão do futebol europeu:
“No meu primeiro treino, dominei a bola para ir girando e já me levantaram. Eu falei ‘nossa, como o futebol aqui é rápido’. Porque lá é 220 e eu estava a 60/70 por hora. No jogo, parecia que eu estava jogando em outro planeta. A realidade era totalmente diferente. Eu percebi que, com a mentalidade que eu saí do Brasil, eu nunca iria jogar na Espanha.”
Também o Rafinha falou assim sobre o estilo de jogo dos clubes europeus:
“São poucos os jogadores que chegam aqui e alcançam a velocidade daqui. Essa é a verdade. A velocidade é o fator principal. Já faz 8 anos que eu estou aqui no Bayern de Munique, nós somos treinados para dar 2 toques na bola. O terceiro toque é emergência. Domina, toca, domina, toca. Todo dia nós somos treinados para isso, é repetição. O jogo fica rápido.”
Já o Lucas Moura falou de outro pilar desse estilo de jogo – a coletividade. Veja o que ele disse:
“A principal mudança que eu vejo é o coletivo, o trabalho em equipe. É uma engrenagem. Se esse aqui saiu daqui, o outro tem que fechar. São 11 jogadores que sabem o que vão fazer dentro de campo e, a depender da movimentação de um jogador, os outros têm que fazer a movimentação tal. Eu acho que é o coletivo. E aí entra a função do treinador de fazer esse coletivo funcionar taticamente.”
E complementou:
“E você tem os outros pontos que é o físico, o cara que tem pulmão, que aguenta, a força. São treináveis.”
Fechando com a seguinte conclusão:
“Quando você chega lá fora, você passa a entender que o coletivo é muito importante. Quando eu me encaixar nesse coletivo aqui, se eu souber a minha função direitinho, se eu tiver uma disciplina tática boa, é isso o que vai fazer a diferença.”
O futebol brasileiro é muito mais lento – comprovam os dados do CIES
Essa diferença entre o futebol europeu e o brasileiro ficou comprovada em uma análise recente do Observatório de Futebol do Centro Internacional de Estudos de Esporte – o CIES – que estudou 26 ligas ao redor do mundo para saber a distância média por jogador em sprint, ou seja, em alta velocidade.
Neste relatório, comprovou-se que a distância percorrida no campo no geral, não só em alta velocidade, no campeonato espanhol, suiço, holandês, etc, é de, em média, 103 km. E o Brasil está em penúltimo lugar. Os jogadores brasileiros, em média, percorrem menos quilómetros, ou seja, preenchem menos o campo.
No Brasil, os jogadores também correm menos em alta velocidade. Isso indica que, no Brasil, os jogos são mais lentos e com menos campo preenchido, há mais distância entre os jogadores e, com isso, temos mais erros de passes.
Geralmente, os times brasileiros percorrem menos 9 km por jogo em comparação aos times europeus. Colocando na soma de um campeonato, a diferença de corrida em campo entre um time brasileiro e um time europeu é enorme. Na Libertadores, por exemplo, a média de corrida em campo é de 96 km por jogo.
A distância percorrida não é um número que indica o nível do time ou da liga diretamente, só que os jogadores da Europa acabam percorrendo e cobrindo muito mais o campo do que os jogadores da América do Sul, refletindo em um estilo de jogo mais rápido e mais intenso. Isso nos mostra que nós estamos longe de ter o mesmo estilo de jogo dos europeus.
A corrida contra o tempo do futebol brasileiro
Mas nem tudo está perdido. E os números recentes do futebol brasileiro nos mostram que nós estamos correndo contra o tempo. Os times brasileiros estão, agora, começando a seguir o mesmo caminho dos times europeus, mas com uma grande vantagem ao seu lado: todo o conhecimento já acumulado, as facilidades das tecnologias e – o elemento mais importante – os dados!
Não teremos que esperar outros 30 anos para dominarmos um estilo de jogo – isso já está acontecendo! E, em breve, veremos todos os seus resultados! A nova era de ouro do futebol brasileiro está no seu início e um dos times pioneiros desse movimento está sendo o Flamengo que, desde 2019, vem quebrando recordes e escrevendo uma nova história no futebol brasileiro.
Com o trabalho do técnico Jorge Jesus, só em 2019, o clube realizou uma campanha inédita e histórica no Campeonato Brasileiro, além da conquista da Libertadores, após 38 anos de jejum. Em 2020, o time do Flamengo finalizou o ano com quatro novas taças (a Supercopa do Brasil, a Taça Guanabara, a Recopa Sul-Americana e o Campeonato Carioca).
Veja aqui uma análise que o TNT Sport fez do estilo de jogo do técnico Jorge Jesus no Flamengo:
“Outra diferença bastante perceptível entre o Flamengo e os outros times brasileiros na temporada passada era a intensidade. O time carioca estava quase sempre com marcação alta, com intensidade forte, mordendo o adversário até recuperar a bola. Era raro ver a equipe trocando passes laterais pra deixar o jogo morno. Era intensidade, velocidade, jogo vertical em direção ao gol praticamente o tempo todo.”
E, nas palavras do próprio Jorge Jesus:
“O que tentamos passar quando estivemos no Flamengo é que a equipe precisava jogar mais ligada, mais próxima e compacta. Isso fez com que o nosso jogo ficasse mais rápido. Aqui na Europa os jogadores notam que há menos tempo e espaço para pensar. No Brasil tem mais espaço, mas isso está mudando com o tempo.”
E, mesmo com a saída do técnico português do clube, o seu legado no Flamengo continuou. O Flamengo se manteve imparável, agora com o técnico Dorival, superando os números da campanha anterior. Veja como o Dorival deixa claro a sua aproximação tática com o estilo de jogo que domina a Europa:
“Não é um sistema engessado em que você só vai atacar no 4-3-3. Tenho jogadores de mobilidade, aproximação e movimentação. Não posso fazer com que jogadores fiquem estáticos. A obrigação do treinador é fazer com que a equipe chegue ao último terço do campo. A partir daí é com eles, na genialidade, numa tabela, nas triangulações.”
Está claro, então, que velocidade, coletividade e pressão são os elementos principais desse futebol moderno e que está fazendo a diferença no futebol brasileiro atual.
Ciência de Dados e futebol: os dados e as definições táticas do futebol
Mas como garantir que esses elementos sejam bem trabalhados na tática de um time de futebol? Para que os jogadores tenham velocidade e aceleração, é preciso garantir que eles alcancem uma alta performance. Já a coletividade, que é representada pelo domínio de campo, e a pressão para o roubo da bola são garantidas através de uma boa leitura de jogo e do conhecimento dos adversários. São esses os compromissos do treinador moderno.
E é nesse ponto que entra o uso dos dados que está mudando para sempre o mundo do futebol.
Para garantir o alcance da alta performance e a prevenção de lesões nos jogadores, os clubes utilizam os chamados Dados Físicos que vêm, dentre outras fontes, do sistema de GPS utilizado pelos jogadores em seus treinos. Esse será o tema de um próximo artigo do nosso blog e eu convido você a se cadastrar na nossa lista de transmissão para acompanhar as novidades sobre tecnologia, dados e negócios!
Já em relação aos aspectos técnicos e táticos, o futebol se apoia no uso de outros dois tipos de dados – os chamados Dados de Eventos e Dados de Rastreamento. Esses dados são os responsáveis por garantir que os jogadores conquistem o domínio de campo, atuem com pressão sobre o time adversário e aumentem as suas chances de fazer um gol.
Dados de Evento: habilidades e posicionamento com a ajuda da Ciência de Dados
Os Dados de Evento são as informações sobre o jogo anotadas manualmente. A equipe técnica de um time assiste às jogadas pela gravação do jogo e anota, majoritariamente, os eventos com a bola: os passes, os chutes, as defesas, os gols.
Com esse tipo de dado, a equipe técnica registra onde o evento aconteceu no campo (ou seja, a localização do jogador que fez e que recebeu o passe) e o momento do jogo em que o evento aconteceu. Geralmente, não se incluem as informações dos jogadores que não interagiram com a bola naquela jogada. E só nesse tipo de análise já se consegue entre 2 a 3 mil pontos de dados em apenas um único jogo.
São com os Dados de Eventos que se consegue identificar, também, as habilidades individuais de cada jogador e, assim, definir o seu melhor posicionamento em campo.
Dados de Rastreamento: a evolução do futebol com a Ciência de Dados
Já os Dados de Rastreamento são coletados automaticamente por sistemas ópticos – ou seja, aquelas câmeras posicionadas em campo, utilizadas, também, no famoso VAR. Essas câmeras rastreiam todos os objetos que se movimentam no campo: o juiz, os assistentes, a bola e os jogadores, e dão uma visão geral do contexto do jogo, possibilitando a análise não só das jogadas com a bola, mas de todos os movimentos no campo.
Um jogo comum possui cerca de 3 milhões de dados rastreados. Com isso, você tem uma ideia da quantidade enorme de dados que existe hoje no futebol.
Esse tipo de rastreamento apresenta a posição dos jogadores e da bola em 2D, e os dados são utilizados para as definições táticas do jogo, já que é muito importante entender não só o que o time está fazendo com a bola, mas também sem a bola e, para isso, esses Dados de Rastreamento são muito úteis. Com os Dados de Rastreamento, é possível ter uma medição contínua de onde cada jogador está no campo, em cada momento do jogo.
Esses dados informam onde os jogadores estão correndo em campo, as suas velocidades, as suas acelerações e, também, outros parâmetros físicos. E é aqui que entra o trabalho de um Cientista de Dados: a construção de ferramentas que permitam extrair as informações chaves desse tipo de dado rastreado.
Pitch Control: o modelo de Machine Learning que lê os dados do futebol
Uma das ferramentas mais utilizadas pelos times europeus é o chamado Pitch Control – um modelo de Machine Learning aplicado sobre a imagem em 2D que foi gerada pelos Dados Rastreados e que mostra, considerando a velocidade e a aceleração dos jogadores em campo, a área que cada time está dominando o campo e que tem a maior probabilidade de obter a posse de bola em uma determinada jogada.
Esse modelo de Machine Learning foi desenvolvido pela equipe de dados do time do Barcelona e hoje domina as análises dos principais times europeus, inclusive o Liverpool, que virou um dos cases mais famosos de aplicação da Ciência de Dados no futebol.
Dá uma olhada sobre como esse modelo de análise funciona.
Essa ferramenta nos dá a ideia do espaço de campo que um jogador está ganhando enquanto a bola está rolando. Vejam que as setas indicam a velocidade dos jogadores e as partes coloridas indicam o nível de controle de campo de cada time.
Com a expansão do domínio de campo, o time consegue aumentar a sua probabilidade de fazer um gol. Na jogada, então, analisada através dessa ferramenta, é possível identificar quando um jogador domina uma parte do campo tornando o passe possível para mais perto da área de pênalti, aumentando, assim, a sua probabilidade de marcar um gol.
São ferramentas como essa que criam a oportunidade de se quantificar o valor das ações de um jogador que não está com a posse de bola no momento da jogada. Enquanto os dados de evento focam nas jogadas com a bola, os dados de rastreamento nos dão a possibilidade de fazer uma melhor análise tática de todo o time em campo. E combinando os dados de evento com os dados rastreados, é possível ter uma perspectiva muito rica do que se desenvolveu na jogada.
Entende por que agora os times brasileiros têm vantagens?
Todas essas ferramentas e os bilhões ou trilhões de dados rastreados já existem. Toda a inteligência sobre esses dados já foi e está sendo desenvolvida não só pelos clubes europeus, mas também por empresas especializadas. E os times brasileiros, então, não precisam esperar mais 30 anos para dominar um estilo de jogo e muito menos esperar 20 anos para dominar por completo essas jogadas.
Já está tudo pronto.
O que está acontecendo com o Flamengo pode ser replicado em todos os outros clubes de futebol do nosso país, permitindo com que o futebol brasileiro reviva a era de ouro, voltando a ocupar o seu devido lugar de destaque na esfera mundial.
E você pode ser um propulsor dessa jogada – não só como um torcedor pressionando e incentivando essa decisão pelo seu time, mas também como um profissional de dados, atuando diretamente na reestruturação do futebol brasileiro.
Ainda estamos correndo contra o tempo. Ainda têm muito para os clubes brasileiros fazerem. Mas a nossa retomada para os tempos áureos já começou. E está em nossas mãos, como brasileiros, fazer essa visão acontecer.